Há algumas semanas, uma postagem feita pela jornalista Sandra Annenberg viralizou nas redes. O vídeo mostrava uma lagarta peluda e acompanhava a seguinte legenda: “Alguém sabe que bicho é esse? Pisei nele e meu pé está pegando fogo! Uma dor insuportável! Socorro!”. Os seguidores da apresentadora não hesitaram em ajudar diante do pedido. Foram mais de 5 mil comentários cogitando sobre a espécie do animal – a Podalia orsilochus, ou lagarta-cachorrinho –, os sintomas que poderiam surgir após o contato e a necessidade de aplicação de um antídoto para a queimadura. Mas não havia motivo para pânico: as lagartas cabeludas podem até machucar, mas apenas as do gênero Lonomia, que possuem “espinhos”, demandam tratamento com soro.
Mais tarde, Sandra voltou às redes para avisar que estava bem. Por conta da dor lancinante, contou ter procurado atendimento médico para controlar o desconforto, mas não precisou receber o chamado soro antilonômico, visto que seu acidente aconteceu com um outro tipo de lagarta. Entre os esclarecimentos, disse não imaginar que existia um soro capaz de tratar os possíveis agravantes provocados pela queimadura do animal e informou que o produto era fabricado pelo “querido Instituto Butantan”.
As dúvidas enfrentadas pela jornalista ilustram muito bem a confusão que diversos brasileiros podem ter diante de uma situação parecida. “Em lugares onde a ocorrência de Lonomia é mais comum, como na região Sul do país, as pessoas conhecem bem essa lagarta e os procedimentos recomendados diante de um incidente. Os problemas acontecem quando o indivíduo não se atenta ao bicho com que teve contato e nem dá a devida importância aos sinais de envenenamento”, explica a diretora técnica de produção de soros do Butantan, Fan Hui Wen. A seguir, conheça as características-chave que ajudam na identificação do animal e como proceder em caso de acidente.
Sinais de alerta
Lagartas são o estágio larval dos insetos pertencentes à ordem dos lepidópteros, que posteriormente vão se transformar em mariposas ou borboletas. No geral, aquelas com potencial para causar acidentes dividem-se em duas grandes famílias: Megalopygedae e Saturniidae. A Megalopygedae engloba as chamadas “cabeludas”. Dependendo do estágio em que se encontram, variam de um a oito centímetros de comprimento, têm hábito solitário e apresentam coloração castanha, branca, preta ou rosada. Seus longos e sedosos pelos são inofensivos, porém escondem cerdas pontiagudas capazes de provocar dor persistente, queimação e irritação na pele. Esse grupo inclui a lagarta-cachorrinho, mostrada por Sandra Annenberg no vídeo.
Já a família Saturniidae compreende as “espinhudas”. O grupo inclui as lagartas do gênero Lonomia, que têm maior relevância médica pois podem ocasionar acidentes graves e até a morte. Têm coloração marrom-esverdeada, listras longitudinais castanho-escuras e padrões brancos em forma de U distribuídos por todo o corpo, além de inúmeros espinhos verde-claros que lembram o formato de pequenos pinheiros – é por meio desses dispositivos que elas inoculam seu veneno. No estágio antes de virar casulo, podem alcançar mais de cinco centímetros de comprimento. Outra característica importante é que as Lonomias têm hábito gregário, ou seja, vivem em bandos por exalarem um feromônio de atração.
Quando lagartas, é comum encontrá-las aglomeradas no tronco de árvores frutíferas, onde descansam durante o dia, subindo até a copa para se alimentarem de folhas à noite. Passado esse período, que dura em média 60 dias, elas descem para as partes mais baixas do tronco e ficam próximas à terra úmida para se transformarem em pupas. Entre 30 e 90 dias vão emergir, então, as mariposas, reiniciando o ciclo de vida do inseto.
Como dependem do calor e da umidade para se desenvolver e procriar, a temporada de Lonomias varia bastante no Brasil. Na região Sul, por exemplo, elas costumam aparecer no final do ano, entre os meses de novembro e dezembro; no Sudeste, há ocorrência desde janeiro até abril; já no Norte, onde as estações são menos demarcadas, as lagartas podem aparecer o ano inteiro.
Acidentes
De acordo com Fan Hui Wen, grande parte dos envenenamentos com Lonomia acontece nos membros superiores, como mãos, braços e até nas costas, principalmente porque o animal vive aglomerado nos troncos das árvores e as pessoas podem se apoiar neles sem perceber. Esse agrupamento, inclusive, pode ser um agravante – afinal, quanto mais indivíduos juntos, maior pode ser o volume de veneno inoculado. Já as cabeludas geralmente causam acidentes por uma lagarta isoladamente, como foi o caso da jornalista Sandra Annenberg.
“Nessa hora, é importante manter a calma e fazer o reconhecimento pelas características do animal. Para as lagartas peludas, a indicação é lavar e realizar compressa gelada no local do contato e procurar uma unidade de saúde caso a dor seja intensa”, orienta a diretora técnica de produção de soros do Butantan. Agora, se o bicho for do tipo “espinhudo”, tente tirar uma foto do exemplar e siga para uma unidade de pronto atendimento, onde os profissionais de saúde devem buscar a confirmação se o acidente foi ou não provocado por Lonomia.
Em casos positivos, inicia-se então uma série de protocolos para acompanhar a evolução do quadro. O primeiro passo é realizar uma coleta de sangue e verificar a coagulação do paciente. Mesmo que esteja tudo certo, o recomendado é que a pessoa permaneça em observação entre 6 e 12 horas. Se houver alterações que indiquem que há envenenamento sistêmico no período, é feita a administração do soro antilonômico, que neutraliza os efeitos do veneno – são ministradas cinco ampolas para quadros moderados e dez para graves.
“O que pode acontecer é da pessoa encostar numa lagarta, não saber que se trata de uma Lonomia e procurar atendimento muitas horas ou dias depois, com situações bem agravadas”, alerta Fan. Tudo começa com dor em queimação, irritação local, vermelhidão e inchaço leve. Depois, algumas pessoas podem apresentar dor de cabeça, náuseas e vômitos, seguidos por sangramentos na gengiva, nariz e urina, além do aparecimento de manchas arroxeadas pelo corpo. Esses são sintomas extremamente preocupantes e indicam a necessidade imediata de atendimento médico.
Soro antilonômico
O Butantan é o único produtor mundial do soro específico para o tratamento dos envenenamentos moderados e graves causados por lagartas do gênero Lonomia. Disponível gratuitamente em todo o território brasileiro pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1996, o imunobiológico também já ajudou a salvar vidas no Peru, Colômbia, Argentina, Uruguai e Guiana Francesa.
O produto é resultado de um período intenso de trabalhos que se iniciou ainda no final da década de 1980, quando um aumento no número de acidentes com agravantes foi observado nas cidades de Passo Fundo (RS) e Chapecó (SC).
Na época, o Butantan foi procurado pelas autoridades de saúde da região e a hematologista e pesquisadora do Instituto Eva Kelen, já falecida, foi quem ficou à frente dos estudos sobre o veneno do animal e os envenenamentos causados por ele. “Eu estava no início da minha carreira. Me lembro que a dra. Eva tinha acabado de retornar de uma de suas viagens ao Sul. Ela foi até mim com uma pilha de papel-almaço cheios de anotações sobre os pacientes e disse: ‘agora é com você’”, lembra a atual diretora técnica de produção de soros, que é médica e então tinha acabado de ingressar no Butantan.
Sob a liderança do então pesquisador do Laboratório de Imunoquímica e atual liderança científica do Butantan, Wilmar Dias da Silva, em pouco tempo o Instituto produziu um soro capaz de reverter os sinais e sintomas do envenenamento por Lonomia. Estudos conduzidos por grupos de pesquisadores em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul mostraram que o soro antilonômico era capaz de combater um então recente problema de saúde pública. “Sem dúvidas, foi um grande aprendizado para mim”, reflete Fan.
Assim como os outros 11 soros produzidos pelo Butantan contra toxinas de microrganismos e animais peçonhentos como serpentes, aranhas e escorpiões, o soro antilonômico envolve a imunização de cavalos e a obtenção do plasma do animal, que posteriormente é purificado e formulado para dar origem ao produto final.
“Para a fabricação dos antígenos nós precisamos, literalmente, ‘depilar’ a lagarta. Depois, forma-se um ‘chumaço de espinhos’ que será macerado em uma solução líquida. É como se a gente fizesse uma ‘caipirinha’ com essas cerdas venenosas”, esclarece a pesquisadora. Por fim, o líquido retirado vai para uma centrífuga que separa os restos de espinhos da substância de interesse que será usada na imunização dos cavalos.
Diferentemente do que acontece com os outros soros de animais peçonhentos, as lagartas empregadas na cadeia produtiva não podem ser reaproveitadas, pois extravasam sua hemolinfa durante o processo e acabam morrendo. Para garantir o volume produtivo dos soros necessários para salvar vidas, o Butantan mantém parcerias com secretarias de diversos estados da região Sul e do próprio Distrito Federal, que realizam a coleta do animal. A retirada fica a cargo do Instituto.
No ano de 2022, o Butantan enviou cerca de 5 mil frascos de soro antilonômico ao Ministério da Saúde. De acordo com dados da pasta, 500 a 1.000 acidentes com Lonomia são registrados anualmente no país. A orientação para evitar possíveis incidentes é sempre observar bem troncos onde a pessoa toca ou apoia, assim como ao manusear folhas e gravetos e ao realizar atividades de jardinagem ou outros trabalhos ao ar livre, e sempre que possível fazer o uso de luvas.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: José Felipe Batista e Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
Matéria – Instituto Butantan
Imagem – As Lonomias vivem em bando e possuem espinhos verdes que lembram o formato de pequenos pinheiros