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Pesquisa com DNA antigo transforma uma espécie de sapo em 12

No início, eram quatro espécies. Depois, essas quatro viraram uma. Agora, análises de DNA antigo revelam que são pelo menos 12 espécies — três das quais já podem estar extintas na natureza. Essa é a matemática de um desafio biológico que cientistas enfrentam há quase seis décadas para descrever um grupo de sapinhos da Mata Atlântica que costumava ser classificado como Allobates, mas agora passa a se chamar Dryadobates, segundo um estudo liderado por cientistas da USP e publicado na revista do Museu Americano de História Natural, em Nova York.

A história começa um século atrás, em 1925, quando o cientista brasileiro Adolpho Lutz descreveu uma nova espécie de anfíbio do litoral do Rio de Janeiro, que viria a ser classificada como Allobates olfersioides. (Além de médico sanitarista e epidemiologista, Lutz era um estudioso da natureza e foi responsável pela descrição de diversas espécies de anfíbios, insetos e moluscos da biodiversidade brasileira.) Era um sapinho do tamanho de uma moeda, com menos de 2 centímetros de comprimento, dorso marrom, pupilas alaranjadas e uma faixa preta correndo pelas laterais do corpo.

Quarenta e dois anos depois, em 1967, o zoólogo brasileiro Werner Bokermann descreveu mais três espécies de sapinhos que ele encontrara em outras localidades da Mata Atlântica, muito semelhantes ao Allobates olfersioides. Elas viriam a ser classificadas como Allobates alagoanus (de Alagoas), Allobates capixaba (do Espírito Santo), e Allobates carioca (de uma outra localidade no Rio de Janeiro). 

Os anfíbios do grupo Allobates são genericamente chamados de rã-foguete ou sapo-foguetinho no Brasil. Eles são parentes próximos das famosas rãs-de-veneno (aqueles sapinhos de cores vibrantes das florestas tropicais da Amazônia e da América Central), mas não produzem toxinas. Em inglês, são chamados de nurse frogs (sapos-enfermeiros), por causa da maneira como cuidam de seus filhotes. Os ovos são colocados em terra firme e ficam sob os cuidados do macho, que urina sobre eles para mantê-los úmidos e depois carrega os girinos sobre as costas até o riacho mais próximo, para eles continuarem seu desenvolvimento. Os adultos vivem em meio ao folhiço no chão da floresta e são muito comuns em cabrucas – plantações de cacau mescladas com a floresta.

Sapinho de uma espécie ainda não descrita do gênero Dryadobates, que vive em meio ao folhiço da Mata Atlântica – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Mais quatro décadas se passaram até que, em 2007, dois pesquisadores — Vanessa Kruth Verdade e Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade Federal do ABC (UFABC) e do Instituto de Biociências (IB) da USP, respectivamente — resolveram fazer uma revisão de tudo o que se sabia sobre esses bichos até então, e concluíram que não havia variação morfológica suficiente entre eles para classificá-los como espécies distintas. Sendo assim, a nomenclatura científica foi reorganizada e todas as linhagens conhecidas de Allobates da Mata Atlântica passaram a ser classificadas como uma única espécie: Allobates olfersioides. As outras três denominações (alagoanuscapixaba e carioca) perderam validade científica — ou seja, deixaram de existir como espécies.

Vanessa e Rodrigues foram rigorosos na pesquisa: analisaram a morfologia de 880 sapinhos, oriundos de 29 localidades da Mata Atlântica. Mas havia uma limitação incontornável no estudo: as populações de sapinhos que serviram de referência para os trabalhos iniciais de Lutz e Bokermann já estavam extintas nos locais onde os animais haviam sido originalmente coletados, o que impedia Vanessa e Rodrigues de voltar a campo para fazer estudos adicionais com membros daquelas mesmas populações. 

Além disso, todos esses animais do passado estavam preservados em álcool, o que impossibilitava a realização de análises comparativas de DNA e de coloração da pele com animais do presente — porque o álcool degrada o DNA e apaga a coloração dos bichos com o passar do tempo. Sendo assim, os pesquisadores tiveram que basear suas conclusões em características exclusivamente anatômicas, que são só uma parte da “fórmula” que a ciência moderna utiliza para diferenciar espécies. Os padrões de canto, por exemplo, são uma peça fundamental do quebra-cabeça para os anfíbios, mas não havia registros acústicos das populações originais estudadas por Lutz e Bokermann para preencher essa lacuna.

“Com base apenas nos dados morfológicos, não tinha como separar”, conta Rodrigues, hoje Professor Emérito (aposentado) da USP. Segundo ele, as diferenças entre os sapinhos eram tão sutis que era impossível determinar, com certeza, se elas representavam variações interespecíficas (entre indivíduos da mesma espécie) ou intraespecíficas (entre indivíduos de espécies diferentes). Sendo assim, a decisão foi reclassificar todos os sapinhos como representantes de uma única espécie, em vez de quatro.

“Ninguém na comunidade científica estava muito contente com esses resultados, mas na ciência não importa o que você acha, importa o que os dados mostram”, afirma o herpetólogo Taran Grant, também professor do IB, especialista em anfíbios e autor principal do novo estudo, publicado no Bulletin of the American Museum of Natural History. “Eu sabia que, para resolver esse problema, eu precisaria trabalhar com DNA”, completa ele.

Solução genética

Dez anos depois da unificação das quatro espécies, Grant começou a investigar o DNA das populações viventes de Allobates da Mata Atlântica, e percebeu que havia diferenças genéticas significativas entre elas, apesar da similaridade morfológica.

Os dados genéticos indicavam que elas poderiam, de fato, representar espécies distintas — retornando à interpretação inicial de Lutz e Bokermann. Para ter certeza, porém, era necessário comparar a genética dos sapinhos do presente com a dos sapinhos do passado, cujas populações originais estavam extintas na natureza. Isso só se tornou possível a partir de 2017, quando novas técnicas de sequenciamento começaram a permitir analisar amostras do DNA extraído de animais que estavam preservados em álcool, conhecido como “DNA histórico” (hDNA, em inglês). Foi o nascimento de uma nova área de pesquisa, conhecida como museômica. “É algo que pode redesenhar completamente a árvore da vida”, anima-se Grant. “Nossos museus estão cheios de espécimes antigos que, agora, poderão ser estudados com essa técnica.”

O espécime USNM 96540, usado por Adolpho Lutz para descrever a espécie Allobates olfersioides, em 1924 – Foto: NMNH/Smithsonian Institution (Reprodução de acervo digital)

Determinado a tirar proveito dessa nova ferramenta, Grant pediu apoio (R$ 650 mil) à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para montar um laboratório especializado em análises de hDNA no Instituto de Biociências da USP. Conseguiu. O laboratório começou a funcionar em 2022 e as primeiras amostras analisadas na nova instalação foram, justamente, as de DNA histórico de Allobates olfersioides.  

Os resultados revelaram uma diversidade ainda maior do que o esperado. Além das quatro espécies, originalmente descritas por Lutz e Bokermann, os pesquisadores identificaram outras oito espécies de Allobates que ainda estavam “escondidas” sob o manto da semelhança morfológica em outras áreas da Mata Atlântica, desde o sul do Rio de Janeiro até o norte de Pernambuco, incluindo algumas manchas de floresta no interior da Bahia (veja mapa abaixo).

“Isso muda radicalmente nossa compreensão da diversidade desse grupo. Passamos de uma para, pelo menos, 12 espécies conhecidas”, comemora Grant. E há potencial para chegar a 16, segundo ele, com base em evidências adicionais de outras populações, que ainda precisam ser mais bem avaliadas.

Não só isso, mas os pesquisadores resolveram reclassificar essas 12 espécies dentro de um novo gênero, chamado Dryadobates, por considerar que esses sapinhos da Mata Atlântica são suficientemente distintos dos Allobates que ocorrem na Amazônia e em outros biomas. As classificações não são baseadas apenas em diferenças no DNA do bichos, mas num conjunto de características genéticas, morfológicas e acústicas associadas a cada uma dessas linhagens, que as diferenciam umas das outras na natureza — ainda que essas diferenças não sejam tão óbvias aos olhos (ou aos ouvidos) de um observador humano.

O novo estudo restabelece a validade científica das quatro espécies originais (agora denominadas Dryadobates olfersioidesDryadobates alagoanusDryadobates capixaba e Dryadobates carioca) e descreve duas das oito novas espécies (batizadas de Dryadobates lutzi e Dryadobates bokermanni, em homenagem a Adolpho Lutz e Werner Bokermann). As outras seis espécies ainda não têm nome e deverão ser descritas em publicações futuras. O nome Dryadobates faz referência ao primeiro termo usado pelo naturalista Karl Phillip von Martius para se referir ao bioma Mata Atlântica no século 19: Dryades.

Mapa mostrando a localização das 12 espécies identificadas de sapinhos do gênero Dryadobates (6 já nomeadas e 6, ainda sem nome). Quatro delas só foram confirmadas graças a análises de material genético histórico (hDNA, em inglês), extraído de exemplares guardados em museus – Crédito: Taran Grant

Extinção vs. conservação

A revelação dessa “diversidade críptica” (espécies morfologicamente indistinguíveis, mas geneticamente diferentes) é de grande relevância para a conservação desses anfíbios e dos ecossistemas que eles habitam, especialmente dentro de um bioma tão fragmentado e ameaçado como a Mata Atlântica. Várias dessas novas espécies identificadas no estudo são endêmicas (exclusivas) de regiões específicas do bioma, o que significa que requerem medidas de proteção igualmente específicas para a sua conservação. 

Em outras palavras, o estudo reforça a concepção de que não basta proteger os sapinhos de uma determinada localidade em detrimento de outra, pois os sapinhos dessa outra localidade podem ser de uma outra espécie. Prova disso, segundo Grant, é que três das 12 espécies identificadas no estudo já estão provavelmente extintas, pois não são vistas na natureza há décadas; e outras três são conhecidas de uma única localidade.

“Não ter diferenças morfológicas não significa que não sejam espécies diferentes”, destaca Rodrigues. O oposto também é verdade: organismos aparentemente muito diferentes podem ser membros de uma mesma espécie, como ocorre com seres humanos, cachorros e gatos, por exemplo. “A morfologia muitas vezes não é o único caminho nem, necessariamente, o mais importante (para diferenciar espécies)”, completa o pesquisador.

Uma das três espécies potencialmente extintas é a D. olfersioides — a primeira descrita por Lutz, em 1925 —, que parece ser endêmica da região de Angra dos Reis (RJ) e não é vista por pesquisadores desde 1981. As outras duas são D. capixaba e D. carioca. Os únicos “sobreviventes” dessas linhagens são os espécimes preservados em álcool nas coleções biológicas de instituições de pesquisa. “Por um lado, tem aquela sensação de eureka científica; de descobrir uma coisa nova”, reflete Grant. “Ao mesmo tempo, é uma tristeza terrível saber que alguns desses bichos não existem mais, e que o único vestígio daquela espécie é um bicho morto no museu.” 

Não há como ter certeza sobre o que levou essas populações à extinção, mas o mais provável é que seja uma combinação de pressões ambientais locais, como poluição e desmatamento, com alterações globais, como o aumento de temperatura e a maior ocorrência de eventos climáticos extremos. Os anfíbios são particularmente sensíveis a mudanças ambientais e costumam ser os primeiros a desaparecer quando há uma degradação do ecossistema. Segundo Taran Grant, cientistas estão descrevendo cerca de 120 novas espécies de anfíbios por ano ao redor do mundo, “mas, ao mesmo tempo, estamos perdendo espécies numa velocidade incrível”. “É muito importante entendermos a magnitude dessa perda”, completa ele. 

Rodrigues e Vanessa Verdade também assinam o novo trabalho, em parceria com colegas vinculados a universidades na Europa e nos Emirados Árabes Unidos. Além de professores da USP, Grant e Rodrigues são pesquisadores associados do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Parte dos exemplares coletados por Lutz no início do século 20 estão guardados no museu americano em função de uma doação feita pelo Museu Nacional brasileiro, em 1935. Essa troca de materiais é uma prática comum entre museus do mundo todo.

Mais informações: taran.grant@ib.usp.br, com Taran Grant; mturodri@usp.br, com Miguel Trefaut

Matéria – Jornal da USP

Imagem – Um sapinho do gênero Dryadobates, fotografado sobre a ponta do dedo de um pesquisador. Os adultos desse grupo têm menos de 2 centímetros de comprimento – Foto: Taran Grant

Texto: Herton Escobar

Arte: Simone Gomes