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Pesquisa do Butantan sugere origem comum entre enzimas digestivas e aquelas presentes no veneno de aranhas

Grande parte das aranhas que possuem veneno utilizam desse artifício para imobilizar suas presas e garantir seu alimento. Aquelas que não contam com tal habilidade, no entanto, precisam se virar com o que têm: suas teias. Esse é o caso das aranhas Uloboridae, que perderam suas glândulas de veneno secundariamente durante a evolução.

As teias são feitas de uma seda composta por proteínas e servem para capturar presas, como os insetos, além de serem refúgios de proteção e reprodução do animal. Após empacotar os insetos na seda, as aranhas Uloboridae dão início ao banquete – uma ação simples, mas perigosa: a aranha libera um fluido digestivo intenso, que ajuda a liquefazer a presa e facilita a digestão, mas que é tão agressivo que torna necessário que as Uloboridae mudem a posição de suas pernas para evitar lesões de contato.

Agora, pesquisadores do Instituto Butantan, órgão ligado à Secretaria de Estado da Saúde (SES), entenderam o que torna esse “vômito” tão poderoso. Em estudo publicado na revista Scientific Reports e realizado em parceria com a Universidade Federal de Uberlândia, de Minas Gerais, os cientistas sugeriram uma origem comum entre as enzimas digestivas das aranhas e as enzimas presentes no veneno daquelas que o tem. 

O estudo foi pioneiro em analisar o sistema digestório das aranhas Uloboridae. No processo, os pesquisadores identificaram uma enzima chamada esfingomielinase D, tida como uma enzima exclusiva dos venenos e envolvida na toxicidade destes, principalmente em aranhas com venenos necrosantes como é o caso das aranhas marrons (gênero Loxosceles). Depois, a equipe analisou várias espécies de aranhas, com e sem veneno, para tentar entender se todas produziam a esfingomielinase D em seus sistemas digestórios. Confirmando a hipótese dos cientistas, a enzima estava lá.

“Começamos a olhar também outros bichos correlatos para ver se essa enzima se encontrava no sistema digestório. Foi o caso do carrapato, que não tem veneno, mas tem a enzima, o que reforça que a origem da enzima parece estar muito inicialmente, ao longo da evolução, mais correlacionada ao processo digestório do que ao envenenamento”, disse Adriana Rios Lopes, pesquisadora do Laboratório de Bioquímica do Butantan. 


Aplicação 

A partir deste estudo, os pesquisadores pretendem analisar a possibilidade de extrair enzimas diretamente do material gástrico das aranhas com possíveis aplicações biotecnológicas. “O mercado de enzimas apresenta um lucro anual da ordem de bilhões de dólares e ainda tem muito potencial de crescimento. Além disso, diversos fármacos são inibidores de enzimas, o que torna esse conhecimento fundamental para aplicação”, explicou Adriana.  

Inicialmente, a pesquisa sobre o sistema digestório de aranhas tinha como objetivo entender a fisiologia da digestão. Isso porque esses animais ingerem uma quantidade muito grande de alimentos de uma única vez e informações do tipo poderiam auxiliar na ampliação da produção de soros antiaracnídicos. O trabalho do grupo foi pioneiro na caracterização em nível molecular do fluido digestivo e do intestino de aranhas. 

O progresso do conhecimento pelo grupo e dados da literatura permitiram o início dos estudos comparativos entre veneno e digestão, tornando possível o desenvolvimento de pesquisas subjacentes com foco na aplicação destas enzimas e inibidores. Curiosamente todas essas moléculas caracterizadas no trabalho estão também nas aranhas sem veneno, o que reforça a importância da pesquisa básica para o desenho de novas estratégias de aplicação.

 

Biodiversidade

A pesquisa também deve auxiliar em estudos sobre o metabolismo das aranhas, mostrando quais estratégias metabólicas elas adotam para ingerir grandes quantidades de alimento de uma só vez, entrando depois em longos jejuns.

O estudo reflete ainda a importância da preservação das espécies. Afinal, a manutenção das aranhas é essencial para que os cientistas possam traçar sua linha evolutiva, permitindo ainda a busca por novas moléculas com potencial farmacológico.

 

Matéria – Instituto Butantan 

Reportagem: Carolina Fioratti

Fotos: José Felipe Batista