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Por que animal selvagem não é animal de estimação

O comércio ilegal de animais silvestres é um grande problema de conservação para muitas espécies. Para se ter uma ideia, cerca de 100 tigres, 30.000 elefantes e mais de 1.000 rinocerontes são mortos ilegalmente a cada ano, e mais de 1,5 milhão de aves vivas são capturadas ilegalmente para serem usadas como animais de estimação. Isso representa a face mais visível dessa atividade, o comércio internacional, enquanto em uma escala mais local ela passa muito mais despercebida.

No entanto, o comércio local é muito difundido em algumas partes do mundo, como a região tropical das Américas, onde há uma longa tradição de manter animais de estimação capturados na natureza desde os tempos pré-colombianos.

Além de ser um problema de conservação, essa atividade também representa um risco muito alto de transmissão de doenças zoonóticas. Não é preciso ir muito longe no tempo para ver alguns exemplos. De fato, elas causam a morte de cerca de 2,7 milhões de pessoas por ano e vêm ocorrendo há milhares de anos (até onde podemos rastreá-las).

Entretanto, o crescimento da população humana e a conectividade, bem como a incursão humana em habitats anteriormente inacessíveis, criam os ingredientes perfeitos para novos surtos zoonóticos e sua transmissão em larga escala. A isso se somam os impactos ecológicos e socioeconômicos negativos da transmissão cruzada dessas doenças entre humanos, animais domésticos e animais selvagens.

10.000 animais selvagens como animais de estimação

Mas a verdade é que ainda sabemos muito pouco sobre a magnitude desse problema em escala local. Para tentar obter um panorama mais claro, uma equipe internacional de pesquisadores realizou uma pesquisa na região neotropical durante 13 anos, abrangendo 15 países – da Argentina ao México e à República Dominicana – e percorrendo cerca de 51.000 km.

No total, encontramos cerca de 10.000 espécimes de vida selvagem de 274 espécies nativas em mais de 6.500 residências. De fato, encontramos esses animais de estimação em 95% das localidades visitadas.

A maioria desses animais de estimação foi capturada por seus proprietários ou comprada localmente, de modo que passaram completamente despercebidos nas estatísticas gerais. Isso é bastante significativo, pois quase todos os estudos anteriores sobre esse tópico basearam-se em dados de mercados de animais silvestres e descobrimos que os mercados podem ser responsáveis por menos de 2% do volume total do comércio local.

 

Riscos à saúde e à preservação

Esses animais de estimação vivem em contato próximo com humanos e animais domésticos, compartilhando espaços e até mesmo alimentos com seus donos, o que nos dá uma pista dos problemas de saúde.

É verdade que a maioria dos animais de estimação encontrados pertencia à ordem dos papagaios, que até o momento não é considerada um grupo de alto risco em termos de transmissão de zoonoses, mas algumas doenças transmitidas aos seres humanos (e especialmente aos animais domésticos) já são conhecidas, como o caso da psitacose.

Além disso, eles podem causar problemas significativos de conservação para espécies nativas, pois podem transmitir doenças que são graves em aves. Quando esses indivíduos estão em contato com galinhas e até mesmo com outros papagaios exóticos, eles podem pegar doenças que não existem em populações selvagens e transmiti-las a essas populações quando escapam (o que é comum).

Além disso, o fato de não terem transmitido doenças de alto risco até o momento não significa que não poderão fazê-lo no futuro (por exemplo, pense na gripe aviária). Isso não leva em conta que uma porcentagem de espécies encontradas em casas (como macacos ou roedores) transmitem doenças de alto risco em humanos e causaram epidemias graves no passado e atualmente.

 

Vigilância e controle de doenças

Não podemos prever onde ocorrerá um novo surto de doença. Mas sabemos que há regiões do planeta que são hotspots de biodiversidade e, portanto, espera-se que sejam também hotspots de patógenos. Essas áreas coincidem com os trópicos e também com áreas onde os seres humanos estão experimentando um grande crescimento populacional e de infraestrutura, aumentando a conectividade entre áreas remotas e grandes cidades.

Isso, somado à alta demanda por animais de estimação selvagens sem nenhum controle sanitário, representa um alto risco para a saúde humana, para os animais domésticos e para a própria fauna nativa.

Não há uma solução simples para esse problema, principalmente devido às raízes culturais e às restrições econômicas em muitas dessas áreas para fazer cumprir a legislação já em vigor que proíbe o comércio da fauna nativa. Entretanto, medidas preventivas devem ser implementadas com foco em dois pontos principais: desestimular a criação de animais silvestres e aumentar a vigilância sanitária para a detecção precoce e o controle de surtos emergentes em humanos ou animais. Não é preciso ir muito longe para ver as consequências disso.

 

Pedro Romero Vidal é pesquisador de Biologia da Conservação na Universidade Pablo de Olavide

Matéria – Nexo Jornal

Imagem – FORPUS COELESTIS, OU TUIM-PERUANO, É UMA AVE NATIVA DA AMÉRICA DO SUL. ELA É CAÇADA E VENDIDA ILEGALMENTE COMO ESPÉCIE DE PÁSSARO EXÓTICO – FOTO: RUTH ROGERS/WIKIMEDIA COMMONS

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/externo/2024/05/10/por-que-animal-selvagem-nao-e-animal-de-estimacao