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Tantilla selmae: Nova espécie brasileira de serpente é batizada em homenagem a pesquisadora do Butantan

Referência nacional e internacional no estudo de reprodução de serpentes, a diretora do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV), Selma Almeida-Santos, foi eternizada na história da ciência. Para além de sua inestimável contribuição ao conhecimento da biologia de cobras e lagartos brasileiros, principalmente jararacas e cascavéis, agora ela empresta seu nome a uma nova espécie da família Colubridae: a Tantilla selmae.

A homenagem partiu do biólogo Weverton dos Santos Azevedo, que identificou o animal durante seu mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolvido no Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan (LCZ) sob orientação do curador, Felipe Grazziotin. Os resultados do estudo foram publicados em janeiro de 2024 na revista científica Organisms Diversity and Evolution.

“Foi uma das maiores homenagens que já recebi, fiquei realmente tocada. Achei significativo esse reconhecimento ter vindo de um aluno que não é um dos meus orientandos e que não tem relação com o laboratório onde trabalho aqui no Butantan”, afirma Selma. A notícia chegou no final de um dia atribulado de trabalho, repleto de reuniões e com pilhas de trabalhos acadêmicos aguardando avaliação. “Quase não consegui completar a leitura do artigo de tanto que chorei”, completa.

O epíteto específico da nova espécie (segunda parte do nome científico) é resultado da contração das palavras “Selma” e “mãe”. O nome selmae faz referência tanto à personalidade única e acolhedora da pesquisadora em relação aos seus alunos, quanto ao enorme impacto científico dos trabalhos desenvolvidos por ela ao longo de mais de três décadas de dedicação ao estudo de répteis no Instituto Butantan.

Além de querer homenagear a carreira da herpetóloga, Weverton dos Santos Azevedo também foi motivado por questões de equidade de gênero. “Conheci a Selma em 2017, quando ingressei no curso de especialização, e fiquei maravilhado ao vê-la falando com tanto amor e propriedade sobre o processo de reprodução das serpentes. A paixão demonstrada por ela foi uma grande inspiração”, recorda o estudante, que continua pesquisando a espécie descoberta no doutorado.

Selma + mãe: o nome selmae faz referência ao caráter acolhedor e amigo da diretora do LEEV e referência na área de herpetologia Selma Almeida-Santos

Felipe Grazziotin, curador da Coleção Herpetológica do Butantan e coautor do estudo, salienta que homenagear um acadêmico ou acadêmica concedendo-lhe um nome científico representa um dos maiores reconhecimentos na área da biologia. “As pessoas ficam curiosas do porquê da homenagem. No caso da Tantilla selmae, muitas pessoas podem ver na Selma um exemplo e se sentirem motivadas a seguirem os caminhos da ciência”, diz ele.

Para a bióloga, o fato dela não ser taxonomista – especialista responsável por organizar e classificar os seres vivos – também confere um gosto especial à honraria. Por mais que muitas pessoas perguntassem a Selma “quando ela teria uma cobra com o seu nome”, ela julgava a possibilidade praticamente impossível.

Felipe Gazziotin e Weverton Azevedo em momento de análise da nova espécie, no Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan

Sobre a pesquisa

Entre os representantes da família Colubridae, o gênero Tantilla é um dos menos explorados. Atualmente, a categoria abrange 68 espécies, entre elas a Tantilla melanocephala, que ocorre em toda a América do Sul – com exceção do Chile. A abrangente distribuição geográfica da espécie revela também um alto nível de variação morfológica entre seus indivíduos, sugerindo a existência de um complexo de espécies não descritas até o momento.

Interessado pelo campo da taxonomia e com facilidade para organização e definição de padrões, Weverton se dedica ao estudo das T. melanocephala há quase sete anos, quando iniciou o curso de especialização em Animais de Interesse em Saúde – Biologia Animal, no Butantan. Na época, o estudante foi orientado pelo também pesquisador do LCZ Francisco Luís Franco.

“Conforme fui conduzindo as investigações, percebi que as serpentes da espécie tinham muitas diferenças entre si, como padrões, colorações e número de escamas, além de linhagens genéticas bastante distintas em alguns casos”, explica o primeiro autor do artigo.

Após analisar mais de 200 espécimes, o aluno identificou um padrão de variações que se estruturava geograficamente na região Sul do Brasil. O conjunto de evidências fez com que os pesquisadores sugerissem o reconhecimento da nova espécie, a Tantilla selmae.

Apesar de não ser perigosa aos humanos, a Tantilla selmae é uma espécie peçonhenta e alimenta-se de lacraias 

Uma serpente curiosa

Apresentando uma coloração marrom-alaranjada e uma faixa lateral preta difusa ao longo do corpo, a nova espécie também se distingue do restante das serpentes do complexo por apresentar um menor número de escamas ventrais e subcaudais e um tipo de “capuz” amplo e preto na cabeça, revelando um pequeno círculo branco na região das bochechas.

Apesar de ser considerada abundante, encontrar um exemplar de Tantilla selmae na natureza não é tarefa fácil. Medindo cerca de 40 centímetros de comprimento quando adulta, a espécie mantém hábitos fossoriais e semifossoriais, passando a maior parte do tempo “enterrada” no substrato ou embaixo de pedras. A escolha do habitat está relacionada à oferta de lacraias, principal presa da espécie.

“Se alimentar de lacraias não é algo simples, pois elas também são peçonhentas”, explica Felipe Grazziotin, ressaltando o hábito alimentar como uma das características mais interessantes da nova espécie. O curador ainda explica que apesar de não causar acidentes em humanos, estudos iniciais apontaram que a T. selmae possui toxinas bastante semelhantes às encontradas no veneno das corais-verdadeiras.

“Achei a serpente uma graça e a cada dia estou aprendendo mais sobre ela. Independentemente do animal ter ou não o meu nome, trata-se de um trabalho incrível, muito bem conduzido e orientado. O rigor para o reconhecimento de uma nova espécie é altíssimo. É um orgulho para o Butantan termos o Weverton entre nós”, afirma Selma, que pretende colocar uma réplica em madeira da espécie em sua sala de trabalho.

Além da Coleção Herpetelógica do Butantan, Weverton consultou o acervo de outras quatro instituições brasileiras para concluir sua pesquisa

Importância das coleções e próximos passos

Apesar da pesquisa de campo ser essencial, o sucesso de estudos como esse dependem quase que exclusivamente da qualidade e variedade do acervo das chamadas coleções científicas. “Só conseguimos descrever a biodiversidade de um país com o apoio desses materiais”, reforça Felipe Grazziotin.

Para se ter uma ideia, mais de 200 serpentes foram analisadas por Weverton em seu trabalho de mestrado. Foram utilizados os acervos do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan, do Museu Nacional vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Coleção Zoológica da Universidade Federal de Santa Maria (ZUFMS), da Coleção Herpetológica da Universidade Federal de Santa Catarina (CHUFSC) e do Museu de Zoologia da USP (MZUSP). O exemplar mais antigo analisado data de 1902. “As coleções são importantes para preservar no tempo algo que pode não existir mais no futuro”, completa o aluno.

Agora, Weverton pretende ampliar sua base de dados e realizar a análise de pelo menos mil indivíduos, expandindo sua consulta a acervos do Norte e Nordeste do Brasil, assim como em coleções do Equador, Peru e Argentina. Previsto para finalizar em 2026, o objetivo da pesquisa de doutorado do aluno é entender como se deu a evolução do ancestral comum das diferentes espécies de Tantilla e sua dispersão pela América do Sul por meio de dados genéticos.

“Caso identifique uma nova espécie, pretendo seguir homenageando mulheres que se destacam na área da herpetologia. Quero contribuir para trazer mais visibilidade às pesquisadoras incríveis que temos no nosso país”, conclui.

 

Reportagem: Natasha Pinelli

Fotos: Weverton dos Santos Azevedo (primeira foto) e José Felipe Baptista/Comunicação Butantan

Matéria – Instituto Butantan

Imagem – Nova espécie tem coloração marrom-alaranjada, faixa lateral preta e uma espécie de “capuz” que revela pequenas partes brancas na região da cabeça